... a História, em fim de contas, é a história
do lugar fantasmático por excelência, isto é,
o corpo humano.
R. Barthes
Conhecer o mistério de um corpo é talvez
mais importante do que conhecer
o mistério de um alma.
Mário Quintana
A arte para Bourriaud pode ser definida como uma atividade que busca produzir relações com o mundo com a ajuda de signos, formas, gestos ou objetos1. Todavia pensar em arte é pensar em épocas ante contextos sociais e principalmente em paradigmas e transformações sociais. Pensando na historia do corpo e aqui já começo me perguntando “é possível criar uma historia do corpo?” tentando enfatizar aqui um pensamento em dança cênica. Na história da dança, observamos um corpo profanado e incluído em uma retórica dentro dos processos da Idade Média e dando um salto gigantesco observamos bailarinas descorporificadas, eterias, praticamente sem pés no bale romântico.
O que pode um corpo? Nos pergunta Spinoza. O que pode uma arte com o corpo? Aqui pensando não apenas a dança, mas todas as artes que utilizam diretamente o corpo como as hapticas, a performance, a dança e o teatro. Voltando ao pensamento de Bourriaud a arte busca produzir relações e em arte contemporânea caminhamos não para um corpo no outro, longicuo, corforme? ‘obras que não tem como meta formar realidades imaginarias ou utópicas e sim constituir modos de existência, qualquer que for a escala exigida pelo artista’1. Um corpo presente que consiga habitar seu mundo, como no panfleto do espetáculo Experimento2 de Luciana Gontijo e Margo Assis “Nosso corpo esta aprendendo a não saber para onde ir” como se fosse necessário a re aprendizagem do mover, a percepção que temos um corpo, domesticado ou não, onde a pulsão e o sangue fluem. A possibilidade de um discurso do corpo presente.
Nietzsche segundo Julio Martins2 comenta de forma irônica e debochada a questão de nenhum filosofo ter escrito sobre o nariz do homem, uma ausência de reflexão sobre as questões corporais na filosofia tradicional. Que corpo é este que habitamos? Que historia ele nos trás? O que esta escrito em seu nariz? Estamos aptos a ler essa historia?
A historia pode ser contada de várias maneiras e a que coloco em linha aqui se faz necessárias para outras possibilidades futuras ainda nesse texto. Como nos elucida Greiner3 foi Merleau-Ponty e toda a genealogia do pensamento fenomenológico, que elucidou a proposta do corpo como estrutura física e vivida. Sobre este aspecto ao conceituar podemos visualizar uma corrente de fluxo entre exterior e interior. Assim podemos visualizar a historia de um corpo estudando a corporeidade de suas experiencias e a partir de seus processos cognitivos. Sua experiência vivida. Nos anos 60 Gibson conceitua a percepção haptica, conceito explorado por Deleuze que aponta a percepção não como fragmentaria mas como um conjunto. Para Deleuze, ‘o movimento da percepção haptica se aproxima mais da exploração de uma ameba do que do deslocamento de um corpo no espaço, pois o movimento da ameba é regido por sensações diretas, por ações de forças invisíveis como pressão, estiramento, dilatação e contração. Não é o movimento que explica a sensação, mas, ao contrário, é a elasticidade da sensação que explica o movimento’4. O corpo vivencia sua experiência artística então com um conjuntos de sensações hapticas em uma corrente de fluxo de interior e exterior. As organizações de suas construções motoras e sensórias foram se construindo através dos processos de aprendizagem e de cognição. Pensando em todos os nossos automatismos e todos os nossos processos corpóreos de aprendizagem, cada individuo experiência a arte em momentos e ate mesmo em cartografias neuronais distintas. A relação entre o propositor e o espectador leva a um indizível, algo que esta situado em um “ontológico” de qualquer compreensão e que sustenta a possibilidade transformadora da experiência.
Lygia Clark nasce em Belo Horizonte em 19205 e em suas obras explora não apenas o sentido da visão, muitas vezes já esgotado nas artes plástico. Mas o corpo como um todo. Lygia introduz na arte a experiência, trata-se de um deslocamento dos modos de “assistir arte” o qual é importante buscar novas estratégias de compreensão da experiência. Pensar o corpo – com o corpo – de uma outra maneira. “Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro” nas palavras de Lygia. Clark. Seu trabalho lida com a obra de arte como objeto autônomo, seu duplo caracter, escultório e lúdico. Nos “Bichos” a artista propõe matéria mole, dobradiças, eixos, bichos. Em seu trabalho com objetos relacionais Lygia realiza sessões onde seus ‘paciente’ experienciam seus corpo por várias propostas sensórias.
“O homem encontra seu próprio corpo através de sensações táteis realizadas em objetos exteriores a si. Depois incorporei o objeto, mas fazendo-o desaparecer. Entretanto, é o homem que assegura seu próprio erotismo. Ele torna-se objeto de sua própria sensação” Afirma Lygia em 1969 citado por Milliet6 ,p.110.
O corpo contemporâneo fragmentado, o conhecimento fragmentado, a dicotomia teoria-pratica, corpo-espírito. Seria também a proposta do contemporâneo integrar? Como integrar, unificar na individualidade? Na percepção que somos todos diferentes e em uma arte que cada dia mais do valoriza a experiência individual, pensando como disse Cássia Navas nas nossas listas de supermecado. Como unir o corpo? Como estar presente na experiencia?
Lygia trabalha uma serie de contextos e diálogos, signos e significantes. Ready-mades, “roupa-corpo-roupa”. Segundo Milliet 6 tanto em Clark como em Artaud a proposta é de uma ousadia consciente, um risco procurado, uma dor consentida porque busca arrancar das pessoas a anestesia a que estão culturalmente condenadas. Pensando em dança é a mesma opção poética se da ao gesto, não há como museificar o gesto, ele contem a efemeridade de sua história, do corpo que a produz e de como ele o produz. A pratica poética nesse contexto é visceral, desentranhada da própria carne; é a materialização do imaginário, do sensório, do devaneio, do delírio. A poética da construção e desconstrução do ser.
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